O que as sandálias Havaianas têm em comum com o grão de arroz? Aparentemente nada, mas ao analisar a trajetória da marca é possível associá-la ao alimento em três importantes momentos. O primeiro foi na inspiração para a criação do produto. O design de Havaianas nasceu a partir de uma tradicional sandália japonesa, a Zori, feita com um solado de palha de arroz e tiras de tecido. Desde o seu lançamento, em 1962, o produto traz o formato do grão na textura de sua palmilha. Anos depois, na década de 1980, o par de Havaianas chegou a fazer parte da cesta básica, ao lado do arroz, e foi usado como um dos produtos de referência para controle da inflação no Brasil. O terceiro momento está relacionado com a democratização e penetração da marca: 94% dos brasileiros têm ou já tiveram um par de Havaianas, o que significa que a sandália é tão conhecida quanto o típico prato nacional – feijão com arroz.
A sandália que carrega o espírito do Brasil já vendeu mais de quatro bilhões de pares dentro e fora do País. A construção e o fortalecimento da marca, entretanto, caminharam de mãos dadas com a comunicação publicitária ao longo das últimas cinco décadas, o que potencializou o principal negócio da Alpargatas – a proprietária de Havaianas – por aqui e além das fronteiras nacionais. Atualmente, a sandália é vendida em 116 países e soma 520 lojas exclusivas. “A propaganda de Havaianas foi vencedora em todas as épocas”, afirma Rui Porto, consultor de comunicação da Alpargatas.
O executivo explica que de 1962 a 1994, as campanhas de mídia estavam centradas nas características tangíveis do produto. A expressão “não deformam, não soltam as tiras e não têm cheiro” se popularizou nos anos de 1970 com Chico Anysio estrelando anúncios em TV, rádio e impresso, ora no papel de seus personagens ora como ele mesmo. Na esteira do sucesso das sandálias, veio a concorrência. Para combatê-la, a empresa passou a usar a assinatura “Legítimas, só as Havaianas”. Nos seus primeiros anos de comunicação, a marca – cuja propaganda estava inicialmente a cargo da agência J.W.Thompson – introduziu ainda uma ferramenta de marketing no Brasil: o merchandising. Desta vez, quem deu voz à inciativa foi Jô Soares com o personagem mordomo Gordon, no humorístico Família Trapo.
Nos anos de 1980 e início de 1990, a conta estava sob o comando da agência Talent. Em 1992, a marca convocou Tony Ramos e Elba Ramalho para mostrar que usavam Havaianas no dia a dia, como para lavar o cachorro ou ir à praia com o filho. Os filmes foram dirigidos por Fernando Meirelles. Rui Porto conta que, embora a marca estivesse na mídia de forma eficaz, a sandália apresentou poucas mudanças em suas primeiras décadas de existência. Nesta época, Havaianas era fabricada em quatro cores, com palmilhas brancas, e estava nos pés das classes sociais de baixo poder aquisitivo. “O produto não tinha diferencial, a marca acabou perdendo o prestígio e virou commodity”, diz Porto, ao acrescentar que, na ocasião, a empresa demorou a entender o que o consumidor queria. Além disso, segundo o executivo, a sandália estava perdendo margem de lucro e se não se reinventasse em alguns anos deixaria de existir.
Grande virada
No começo da década de 1990, a concorrência apertou. Rider, da Grendene, conquistava consumidores masculinos, femininos e infantis. Com o slogan “dê férias para os seus pés”, o produto estava na TV com filmes emocionais de dois minutos e trilha sonora de Rita Lee, Paralamas do Sucesso, Tim Maia e Lulu Santos. Diante de mais este ponto crítico, Havaianas deu início ao seu reposicionamento em 1994. Baseada em um pedido dos clientes, que viravam a sola da sandália para baixo para que ela ficasse de uma cor só, a marca lançou a Havaianas Top, um modelo monocromático com quatro tons vibrantes. Paralelamente, começou uma transformação nos pontos de venda, nas embalagens e na comunicação.
A AlmapBBDO assumiu a conta, dando início a um casamento bem-sucedido que dura mais de duas décadas. “Fomos procurar as Havaianas dentro dos armários das celebridades. A base da pirâmide já usava as sandálias e buscamos a ponta, que tinha uma memória afetiva dos anos de 1960 e 1970. Partimos, então, para a relação aspiracional e criamos uma campanha com Luiz Fernando Guimarães mostrando personalidades como Malu Mader, Vera Fischer, Mauricio Mattar e Bebeto com suas Havaianas”, conta Marcello Serpa, sócio e copresidente do board da AlmapBBDO.
Este foi o primeiro passo para que a marca deixasse de ser commodity e criasse uma conexão emocional com o consumidor. “Passamos a abordar os valores intangíveis e a mostrar quem usa Havaianas”, comenta Rui Porto. A partir de 1994, a mudança de posicionamento envolveu a diversificação de públicos com lançamentos de produtos para mulheres, homens e crianças. A moda passou a ser um pilar forte de atuação, com campanhas em revistas femininas. “Novos modelos de sandálias surgiram – femininos, masculinos, infantis – e fomos nos adaptando ao que estava ocorrendo. As campanhas de Havaianas são como uma novela, elas têm uma relação com o brasileiro. Era contraproducente mudar”, diz Serpa.
Celebridade e irreverência
O publicitário explica que, na TV, os filmes começaram a mostrar as celebridades de uma maneira diferente: não como heróis, mas como escada para pessoas comuns agirem. “Este é um caminho eficiente, usando o humor e respeitando o consumidor”, acrescenta Rui Porto. O executivo comenta que o presidente da Alpargatas, Márcio Utsch, costuma dizer que a estratégia tem de ser de longo prazo e o que existe são as adaptações de acordo com o tempo.
Em 21 anos de trabalho entre Alpargatas e AlmapBBDO, mais de cem filmes foram para o ar, todos em parceria com a Cine. Cerca de uma centena de celebridades estrelou os comerciais da marca entre atores, esportistas, humoristas e influenciadores. “Ajudamos a lançar alguns deles. O Reinaldo Gianecchini, por exemplo, não era tão famoso quando fez o primeiro comercial para a marca”, conta o consultor de comunicação da Alpargatas. Tanto Serpa quanto Porto citam, entre os destaques, dois filmes com Rodrigo Santoro. No primeiro deles, de 1998, o ator aparece com sua então namorada Luana Piovani na praia. No segundo, de 2002, ele é convidado a sair de um restaurante por calçar Havaianas. Este comercial, aliás, teve como inspiração um fato ocorrido com o apresentador Luciano Hulk.
Os casais famosos também são personagens frequentes de campanhas. Leticia Spiller e Marcelo Novaes, por exemplo, estrelaram um filme em 1996. Recentemente, a atriz voltou ao ar em um comercial da marca, desta vez com o seu filho com Novaes, Pedro. Fernanda Tavares e Murilo Rosa também participaram de anúncios da marca. Atualmente, a campanha de Alpargatas, modelo fechado de Havaianas, traz dois casais do momento: Cléo Pires e Rômulo Arantes Neto e José Loreto e Débora Nascimento. A campanha – a primeira de Alpargatas – segue a linha da irreverência e brinca com a inversão de gêneros.
Cléo Pires, inclusive, é a estrela de um dos filmes recentes que fizeram sucesso entre o público. No comercial, a atriz é abordada por um falso vendedor que aproveita para anotar o seu telefone. Outra campanha de destaque, segundo Rui Porto, foi a com Cauã Reymond e o cachorro Bolota. Neste filme, há referência à palavra “fajuta”, muito usada por Chico Anysio nas campanhas da década de 1970, além da expressão “exija as legítimas”.
Um filme com Reymond anterior, de 2009, causou polêmica. Ele mostrava uma avó e sua neta em um restaurante conversando, quando o ator entra no ambiente. A avó comenta que a moça precisa de um rapaz como aquele; a neta diz que deve ser complicado casar com uma pessoa famosa. “Quem disse que eu estou falando em casamento, eu estou falando de sexo”, finaliza a avó. Um grupo de consumidores se incomodou e reclamou. A marca optou por tirar o comercial do ar, mas mantê-lo na internet. Em poucos dias, a Havaianas fez um remake e anunciou a mudança de estratégia. “Foi uma sacada da Almap e um trabalho feito em quatro, ou melhor, em doze mãos”, diz Rui Porto. “Essa é uma real parceria – aquela em que cliente demonstra que tem confiança”, completa Serpa.
Espírito brasileiro
Se na TV o herói é o consumidor, nas campanhas de mídia impressa, PDV e internet a sandália assume esse papel. “Existe uma coerência gráfica e uma simplicidade. O produto é um ícone dentro de uma explosão de cor, de design. As peças traduzem o espírito de Havaianas”, diz Marcello Serpa. Diversos anúncios foram exportados e toda a comunicação é feita por aqui. “As campanhas são fortes, bonitas, orgânicas e genuinamente brasileiras”, diz o sócio da AlmapBBDO.
Para o Serpa, a propaganda, de uma maneira geral, contribuiu para o sucesso de Havaianas porque tem identidade e autenticidade. “A marca representa o brasileiro e sua irreverência. Ela expressa uma atitude de relaxamento, de verão, de praia, um estado de espírito do Brasil”, afirma. Segundo Rui Porto, Havaianas combinou um marketing bem feito com um produto que entrega o que promete. “A comunicação faz muito e colabora fortemente para a construção da marca, mas o produto também tem de ser bom, com valores tangíveis”, diz.
Para Beto Almeida, diretor executivo da Interbrand, a comunicação adotada a partir do reposicionamento foi fundamental para a consolidação de Havaianas. “Existe uma qualidade mundial. A marca é forte, simpática, próxima e dita um jeito próprio de se comunicar”, comenta o executivo. Um estudo de 2010 da consultoria mostrou que Havaianas era a marca brasileira de moda mais global. E o status se mantém. Atualmente, entre 35% e 40% da receita com as sandálias vêm de fora.
A internacionalização, aliás, começou de maneira informal: os estrangeiros compravam suas sandálias no Brasil e levavam para fora. O que era suvenir virou negócio. A Austrália foi um dos primeiros países a ter um distribuidor da marca. Hoje, Havaianas está em mais de uma centena de nações. Em 2007, foi iniciada a segunda fase da expansão com a abertura de um escritório em Nova York; no ano seguinte foi a vez de Madri e em 2012 a China.
“Além da identificação dos hábitos e valores dos consumidores, dar um salto internacional rápido e abrangente como esse não é para qualquer um. A marca conseguiu se conectar com diferentes tipos de pessoas, do Brasil à Ásia”, afirma André Matias, diretor de estratégia e avaliação de marca da Interbrand. Segundo Matias, em território internacional, Havaianas entende as necessidades locais, mantêm ativações regionais, mas sem perder a referência de brasilidade. No ano passado, por exemplo, Havaianas espalhou milhares de pares de sandálias na praia de Ibiza, na Espanha, criando um mosaico comemorativo, além de oferecer boias infláveis no formato de chinelos gigantes para os frequentadores.
De acordo com Rui Porto, um dos grandes trunfos de Havaianas é justamente saber ouvir o seu cliente. “Há um enorme respeito ao consumidor: só tiramos o produto de dentro de casa quando ele também passou a usar fora; partimos para o exterior quando Havaianas já era sucesso aqui dentro”, exemplifica o consultor de comunicação da Alpargatas. Beto Almeida, da Interbrand, concorda. “A marca tem a clareza de quem é o seu consumidor e conseguiu aprender com ele. Ela sabe como interferir no hábito (de consumo) de maneira positiva”, diz o executivo ao acrescentar que os clientes compram um estilo de vida. “Essa consistência também ocorre no exterior; Havaianas é acessível e democrática aqui e fora do Brasil”, comenta. Em 2014, foram vendidos mais de 212 milhões de pares e peças de Havaianas em todo o mundo.
O reposicionamento abriu espaço para o nascimento de uma marca inovadora, que passou de uma linha de quatro cores para, a cada coleção, lançar mais 160 modelos com estampas e combinações de cores. Além disso, o co-branding se mostrou uma estratégia bem-sucedida. Ao longo dos últimos anos, a Havaianas fechou parcerias com H.Stern – cuja sandália com tiras de ouro e diamante chegou a custar R$ 45 mil -, Swarovski, Missoni, Farm, Valentino, entre outras. “Existe essa capacidade de se juntar às marcas que estão em alta, o que estimula a construção de uma aura em volta de Havaianas”, afirma Almeida.
Chegar ao topo da pirâmide ao mesmo tempo em que está na base remete a uma das principais características de Havaianas: ser democrática. “Isso está no seu DNA e não é efêmero; é parte de sua estratégia de marca e de negócios”, comenta André Matias. A comunicação publicitária, que ajudou na ascensão e consolidação de Havaianas, permanece entre as diretrizes de forma consistente. “Uma marca que vende de norte a sul para todas as classes sociais precisa de uma cobertura como a da TV aberta”, explica Rui Porto. Para Serpa, hoje, as mídias se comunicam e, por isso, é necessário um conteúdo forte e impactante em todas elas para estimular o diálogo. “O resultado instantâneo é proporcionado pela TV e a conversa continua nas mídias sociais”, finaliza o sócio da AlmapBBDO.
Casamento de longa data
Mais de duas décadas cercam o relacionamento de Alpargatas, a dona de Havaianas, e a AlmapBBDO. A parceria entre cliente e agência se entrelaça com a própria história da “nova” Almap. A empresa foi o primeiro cliente de José Luiz Madeira e Marcello Serpa, em 1993. “Eles apostaram na agência e nos passaram a conta de Samoa – marca que estava disputando o mercado com Rider -; Havaianas veio junto”, conta Marcello Serpa, sócio e copresidente do board da AlmapBBDO. O trabalho inicial foi realizado em 1994 e, em alguns anos, Havaianas deixou de ser commodity para se tornar uma das marcas mais democráticas, valorizadas e desejadas do país.
Este casamento rendeu mais de cem filmes, todos em parceria com a Cine. “Na AlmapBBDO, existe uma qualidade de criação e de planejamento; o grau de excelência que conseguem é cada vez maior”, afirma Rui Porto, consultor de comunicação da Alpargatas. “Fomos crescendo com a marca e a marca crescendo conosco. Nossa relação é de confiança total e absoluta, com conversas francas, mas sem atritos”, diz Serpa. O publicitário conta que Porto já fazia parte da equipe e depois vieram as contribuições de outros profissionais, como Marcio Utsch, presidente da Alpargatas há 12 anos, Carla Schmitzberger, diretora da unidade de sandálias da empresa e Christina Assumpção, executiva de marketing e produtos Havaianas. “Temos muitos talentos reunidos diante da marca, são profissionais com grande experiência com Havaianas”, finaliza Rui Porto.
Para além das sandálias
As pegadas de sucesso de Havaianas são seguidas também dentro da própria Alpargatas. No ano passado, a empresa intensificou a diversificação do portfólio da marca — que já vinha ocorrendo de forma discreta há quatro anos — com o lançamento de uma linha de vestuário. A coleção, lançada em um desfile no Parque do Ibirapuera, trouxe 500 modelos entre peças de moda praia e casual. Segundo a Alpargatas, a ideia é que as roupas acompanhem a essência de Havaianas e o jeito espontâneo do brasileiro. Atualmente, três pontos de venda comercializam os itens: a loja conceito da rua Oscar Freire e a do Shopping Iguatemi, ambas em São Paulo, e a do Shopping Leblon, no Rio de Janeiro. Por enquanto, os novos produtos estão restritos ao Brasil.
“A Havaianas está dando os primeiros passos na diversificação, ainda é preciso entender até onde ela pode ir”, afirma André Matias, diretor de estratégia e avaliação de marca da Interbrand. A extensão da linha de produtos começou em 2010, com o lançamento de toalhas, bolsas e calçados fechados — tênis e o modelo Alpargatas. No ano passado, a expansão de categorias recebeu um investimento de R$ 40 milhões para chegar também ao vestuário e proporcionar ao consumidor o visual completo. No primeiro trimestre deste ano, a linha de calçados fechados e roupas ficou em evidência dentro dos negócios de Havaianas com crescimento nas vendas de 73,3% em relação ao mesmo período de 2014. Recentemente, a marca colocou no ar a primeira campanha do Alpargatas, modelo fechado com sola da sandália. A campanha, aliás, segue o mesmo
conceito das propagandas de Havaianas: irreverência e personalidades. O filme, que brinca com a inversão de gêneros, traz os casais Cléo Pires e Rômulo Arantes Neto e José Loreto e Débora Nascimento. A criação foi também da AlmapBBDO.